sexta-feira, 9 de março de 2012

O início, o Fim e o Meio ( Sobre o filme )

Paulo Coelho acende as velas de um castiçal na mesa de jantar. “Raul é lenda, então por que contar a história?”, pergunta. O interior de sua casa em Genebra é clean. Ele está vestido de preto e começa a falar com tranquilidade sobre o antigo parceiro, com quem escreveu alguns clássicos do rock nacional, como Gita, Al Capone, Eu Nasci Há Dez Mil Anos Atrás e Como Vovó Já Dizia, entre outros. Nesse momento aparece uma mosca. Paulo espanta o inseto e comenta: “Engraçado, aqui não tem mosca”. Ele continua a conversar e é interrompido novamente pelo zumbido do bicho, que voa em torno dele. Ele sorri. “É o Raul, não vou matar.”

Para Walter Carvalho, diretor de Raul – O início, o Fim e o Meio, cuja estreia está prevista para este mês, existe sempre uma alma generosa que protege os documentaristas e, de vez em quando, dá a eles um presente. “A mosca apareceu na hora da entrevista, em cima do Paulo, perturbando a conversa. Na hora, rimos e achamos curioso, mas depois, na montagem, vimos que era incrível que ela aparecesse”, conta.

O inusitado vem do fato de que Raul imortalizou o inseto no baioque – a junção de rock com baião que ele inventou – Mosca na Sopa: “Eu sou a mosca que pousou em sua sopa / Eu sou a mosca que pintou pra lhe abusar”, dizia o refrão. O documentário sobre Raulzito joga luz sobre um gênio que influenciou várias gerações com sua obra ácida, criativa e vigorosa e uma atitude irreverente e livre diante da vida. Walter é um dos diretores de fotografia mais premiados do país. Atuou em 70 filmes para cinema e TV, como Central do Brasil e Lavoura Arcaica. Na direção, assinou Cazuza e Budapeste. “Até para quem gosta e conhece bem o Raul, há enormes surpresas”, garante. O filme percorre épocas e movimentos distintos: a bossa nova, a ditadura, a abertura política, o rock brasileiro, o tropicalismo, os festivais. A assinatura de Walter se percebe desde o início, com a voz em off de Raul e imagens dele comendo peixe no Nordeste, em seguida emendando no sertão da Bahia e cortando para um deserto na Califórnia onde se veem Peter Fonda e Dennis Hopper em Sem Destino.

Uma das razões de o jovem produtor de São Paulo, Denis Feijão, ter encarado a empreitada é a paixão pelo artista, a mesma que move seus fãs inveterados, muitos dos quais ganham a vida como sósias. Embora contemporâneo de Raul, Walter não conhecia a fundo a história do personagem central. “Se ele fosse vivo teria 66 anos. Eu tenho 64. Somos da pós-contracultura, que vem no rastro dos beatniks”, diz. “Quando li que Raul viu mais de 20 vezes o filme Balada Sangrenta, com Elvis Presley, fiquei mexido. Eu próprio assisti pelo menos dez vezes.” Elvis era o elo que faltava entre eles. No filme, pode-se ouvir o roqueiro aos 9 anos fazendo uma imitação de Presley em gravação doméstica. Walter Carvalho também levantava a gola da camisa, fazia um topete no cabelo e fingia tocar guitarra quando garoto.

Raul Seixas nasceu em 1945, em Salvador, filho da classe média: o pai era engenheiro da estrada de ferro e a mãe, dona de casa. Ainda cedo criou com os amigos o Elvis Rock Clube. Daí para a formação do primeiro grupo foi um passo: era o Relâmpagos do Rock, que virou pouco depois Raulzito e Seus Panteras. Esse tipo de conjunto de quatro componentes se espalhou, curiosamente, pelo Nordeste. Em 1968, gravou no Rio seu primeiro disco, com Os Panteras, um estrondoso fracasso. Sua carreira só deslanchou quando inscreveu Let Me Sing, Let Me Sing no Festival Internacional da Canção de 1972. No ano seguinte, lançou o clássico Krig-Ha Bandolo, que continha o hino Metamorfose Ambulante e a canção Ouro de Tolo. Tinha formado com Paulo Coelho uma parceria produtiva. Paulo era hippie e apresentou o amigo a Euclides Lacerda, da Ordem dos Templários do Oriente, sociedade secreta antirreligiosa e cheia de rituais satânicos, baseada nos ensinamentos do ocultista inglês do século 19 Aleister Crowley. Seu lema, adotado pelos jovens discípulos: “Faz o que queres que há de ser tudo da lei”.

Paulo admite uma competição entre os dois e revela que foi ele quem apresentou as drogas ao colega. O produtor André Midani chora ao se lembrar de Raul, e o crítico musical Tárik de Souza afirma ter sido ele o precursor do rap no país. “Raul era vômito”, afirma um Pedro Bial totalmente tiete, que viu 17 vezes o show do ídolo no teatro Tereza Raquel. Caetano Veloso aparece cantando Ouro de Tolo. Os fãs e imitadores surgem reunidos em torno de lembranças marcantes. Foram ao todo 94 pessoas entrevistadas e 400 horas de filmagens. As imagens do próprio Raul são incríveis. “Verdade absoluta não existe, minha música só abre as portas para as liberdades individuais”, diz ele, a certa altura.

Mas os momentos mais reveladores estão reservados para as ex-mulheres e as três filhas. A filha Simone, que foi levada para os Estados Unidos pela mãe, a americana Edith Wisner, aos 4 anos, e nunca mais viu o pai, se emociona. Glória Vaquer fala ao lado da filha Scarlet e do neto de Raul, Dakota, muito parecido com o avô, aliás. Os três vivem no Texas. Lena Coutinho, sua última companheira, gravou sua participação em Washington, onde vive, e admitiu, referindo-se ao alcoolismo: “Perdi a batalha”. Há ainda as ex-companheiras Kika Seixas (com a filha deles,Vivian) e Tânia Mena Barreto. Todas abrem o coração e lamentam a trajetória tumultuada pelas drogas e pela bebida.

O auge de Raul Seixas se deu entre 1973 e 1979. A partir daí, viria a decadência. Morreu só em seu apartamento, em agosto de 1989, aos 44 anos. Seu corpo foi encontrado pela empregada Dalva – que, no filme, desmaia ao voltar ao local. Tinha acabado de fazer uma turnê de 50 apresentações. Para Walter Carvalho, ele morreu de amor. Amor pela menina Edith, por quem se apaixonou na adolescência e que o abandonou quando soube que Glória estava grávida dele. Além disso, ela não teria aguentado a vida que ele escolheu. “Foi o amor que o acompanhou sempre”, afirma Walter. “Ele enveredou pelo caminho da boemia, perdeu o controle e, quando quis voltar, já não tinha mais forças e nem para onde. Sua vida tem uma carga criativa e irreverente, mas também melancólica, que passa por essa ruptura que ele não recupera. Alguma coisa se perdeu no tempo e no espaço.”



fonte: http://www.linkado.info/2012/02/toca-raul/

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