Contracultura
A contracultura, movimento conhecido pelas diversas experiências de rejeição aos sistemas político e econômico da década de 1960 e 1970, também teve o Brasil como locus para suas ideias, e foi na esfera cultural que a contracultura conseguiu infiltrar-se com maior força no país.
Este movimento foi formado por uma base de rebelião juvenil, conforme afirma Boscato, que acreditou nos caminhos abertos por Che Guevara em busca de uma nação socialista internacional ou ainda àqueles que não se enquadrariam em nenhum sistema econômico homegeinizador e viam nas sociedades alternativas uma forma de driblar a sociedade oficial.
A contestação no Brasil surgiu durante o período mais grave do regime militar, “no momento em que se prendia, torturava e eliminava quem ousasse se opor ao governo e a censura tomava conta dos meios de comunicação” . A cultura converteu-se em uma trincheira da oposição e os ventos da contracultura encontraram na música um nicho de debate e de crítica do governo militar.
O Ato Institucional 5 que proibiu qualquer manifestação política, deu poderes extraordinários ao presidente, além de aplicar medidas de segurança no caso de recusa da sociedade foi imposto em 1968 no governo de Costa e Silva. Já no início da década de 1970 o então presidente, General Médice, assinou o Decreto-lei 1077 que estabeleceu a censura prévia nos programas de TV e nas publicações de periódicos e livros. O texto era claro: “Não serão toleradas as publicações e exteriorizações contrárias à moral e aos bons costumes quaisquer que sejam os meios de comunicação” e ainda “Verificada a existência de matéria ofensiva à moral e aos bons costumes, o Ministro da Justiça proibirá a divulgação da publicação e determinará a busca e a apreensão de todos os seus exemplares”
Instaurado o autoritarismo no país através de leis como a 1077/1970 e dos atos institucionais que tolhiam os direitos da população, a cultura serviria como um viés para que a esquerda pudesse se articular.
Foi na música que o baiano Raul Seixas encontrou uma arma de crítica ao governo e uma maneira de debochar do conformismo nacional frente ao milagre econômico . Esta característica ficou evidente em seu primeiro álbum solo Krig-ha, Bandolo!, lançado em 1973 em pleno governo Médice. A música Ouro de Tolo reduziu a nada as vantagens ilusórias ofertadas pela ditadura:
Eu devia estar contente
Porque eu tenho um emprego
Sou um dito cidadão respeitável
E ganho quatro mil cruzeiros
Por mês...
(...)
Ah!
Eu devia estar sorrindo
E orgulhoso
Por ter finalmente vencido na vida
Mas eu acho isso uma grande piada
(...)
Porque foi tão fácil conseguir
E agora eu me pergunto "e daí?"
O autor Marcos Napolitano mostra como a esfera cultural foi foco da chamada “comunidade de informações”, responsável pela elaboração de perfis e prontuários dos suspeitos de atividades tidas como subversivas. Músicos como Geraldo Vandré e Chico Buarque de Hollanda foram alvos constantes da vigilância e do controle dos agentes, que atuaram entre 1967 e 1982. No início da década de 1970 a vigilância sobre a MPB esteve relacionada com o movimento estudantil, sendo este uma das principais peças acusatórias observadas pelo autor nos prontuários dos vigilantes especialmente do DOPS . As participações em festivais e no movimento do MDB também integravam esta lista. Já no início da década de 1980 os olhos dos censores recaíram sobre os movimentos operários, como dos metalúrgicos do ABC paulista.
O historiador Marcelo Ridenti também traz o engajamento por parte da música como contestadora do governo militar. Fica claro em sua obra Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV, a ambigüidade do meio musical brasileiro onde ao mesmo tempo em que foi grande alvo da censura, consolidou-se numa indústria cultural que deu emprego para um grande número de pessoas.
Em sua tese de doutoramento Luis Alberto de Lima Boscato discute a Contracultura através da obra de Raul Seixas mostrando a mescla de influências do baiano. As idéias do mago Aleister Crowley, a Nova Utopia proposta por Lennon e Yoko Ono e o Anarquismo “fizeram a cabeça” do cantor e são explícitas as suas influências nas letras de suas músicas.
Raul Seixas não se encaixava na chamada esquerda, porém também não fechou os olhos diante da repressão do regime militar. Suas letras eram explícitas e alfinetavam o governo e a postura apática e omissa da sociedade que se calou diante do milagre econômico. Nada mais objetivo que a Marcha do Ouro de Tolo para mostrar como Raul e seu parceiro Paulo Coelho partiram para a ação contra a censura, o autoritarismo e o conservadorismo.
Brevemente, a Marcha do Ouro de Tolo foi uma passeata no centro do Rio de Janeiro em janeiro de 1973 onde a imprensa foi convocada para cobrir o evento. A música foi repetida por 40 vezes e a conservadora Rede Globo exigiu que a vinculação no Jornal Nacional só poderia ser feita com a substituição do verso: “eu devia estar feliz porque consegui comprar um corcel 73” teve que ser trocada para “eu devia estar feliz porque consegui comprar um carrão 73”(grifo meu), simplesmente para a emissora não fazer propaganda gratuita para a Ford.
Uma música despertou olhar dos censores, era “Como vovó já dizia”, anteriormente chamada de “Óculosescuro”, que fazia parte do álbum O Rebu e foi trilha sonora da telenovela homônima em 1975. O verso que dizia “quem não tem papel dá recado pelo muro” foi substituído por “quem não tem filé come pão e osso duro” e ainda o verso que dizia “quem não tem presente se conforma com o futuro” virou “quem não tem visão bate a cara contra o muro”. Dentre outras modificações que a música teve que passar para ser liberada.
Uma das bandeiras levantadas pelo movimento contracultural foi a busca pela liberdade sexual. No Brasil, a legislação primava pela moral e os bons costumes, conforme destacados anteriormente, mostra claramente a postura conservadora no qual a sociedade esteve submetida. A liberdade cantada por Raul também abarcou a sexualidade, sua música “A Maçã” que compõem o álbum Novo Aeon, lançado em 1975, traz claramente a idéia da poligamia:
Quando eu te escolhi
Para morar junto de mim
Eu quis ser tua alma
Ter seu corpo, tudo enfim
Mas compreendi
Que além de dois existem mais...
Amor só dura em liberdade
O ciúme é só vaidade
Sofro, mas eu vou te libertar
Raul foi singular, seu estilo americanizado e anarquista nada agradou a esquerda armada brasileira. Porém, assim como muitos militantes Raul e Paulo Coelho também foram presos e torturados pelo regime que fechou o cerco no início da turnê de Krig-Há Bandalo! Quando indagado sobre sua prisão e expulsão do país em uma entrevista à Revista Bizz em março de 1987, Raul responde que:
"Veio uma ordem de prisão do Exército e me detiveram no Aterro do Flamengo. Me levaram para um lugar que não sei onde era. Imagine a situação; estava nu, com uma carapuça preta. E veio de lá mil barbaridades. Tudo para eu dizer os nomes de quem fazia parte da Sociedade Alternativa, que, segundo eles, era um movimento revolucionário contra o governo. O que não era. Era uma coisa mais espiritual. Preferiria dizer que tinha pacto com o demônio a dizer que tinha parte com a revolução. Então foi isso, me escoltaram até o aeroporto." (História do Rock Brasileiro: dos Novos Baianos à Rita Lee. Revista Superinteressante. Ed. Abril, 2004. Página 38)
A paranóica direita militar via na sociedade alternativa um foco de um possível movimento revolucionário. E como declarado pelo próprio Raul esta era “uma coisa mais espiritual” e mesmo sendo um dos muitos artistas que criticaram o governo dos militares, o cantor nunca tomou uma posição partidária quanto ao regime.
Raul cantou a liberdade em todos os seus possíveis significados, especialmente o de não ter opinião. Lamentavelmente, eu diria, sua obra foi vinculada a greve de 1979, quando em um cartaz de 1º de maio, havia uma mosca com o rosto do sindicalista e futuro presidente Luis Inácio Lula da Silva e os dizeres “se você mata uma vem outra em meu lugar” . Justo ele que debochou das opiniões prontas da direita, da esquerda e de quem quer que fosse. A mosca na sopa da ditadura foi absorvida pelo que ela mais abominava: ter posição.
Ouro de Tolo!
http://www.youtube.com/watch?v=cn0S56WPkjQ
Referências
BOSCATO, Luis Alberto de Lima. Vivendo a sociedade alternativa: Raul Seixas no panorama da contracultura jovem. Tese de Doutorado em História Social. USP, 2006.
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: EDUSP, 2003
História do Rock Brasileiro: dos Novos Baianos à Rita Lee. Revista Superinteressante. Ed. Abril, 2004, pp 36 - 45
MOTTA, Nelson. Metamorfose ambulante ou ouro de tolo? Disponível em http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2007/12/406073.shtml
NAPOLITANO, Marcos. A MPB sob suspeita: a censura musical vista pela ótica dos serviços de vigilância política (1968-1981). Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 24, nº 47, 2004
PRADO, Luiz Carlos D; EARP, Fábio Sá. O “milagre” brasileiro: i. In: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida N (orgs). 2ª ed. O Brasil Republicano: o tempo da ditadura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, pp. 207-241
RIDENTI, Marcelo. Todo artista tem de ir aonde o povo está. In: Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. São Paulo: Record, 2000, pp.319-363
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