Filho de Jacob do Bandolim, foi criado em volta dos chorões e das rodas de choro. Na escrita, seu estilo de escrita era duro e desaforado, mas era considerado sentimentalista.
Abalado com a morte de seu pai, compõe a canção Naquela mesa, se tornando grande sucesso na voz de Elizeth Cardoso. Sendo regravada, posteriormente, pelo cantor Nelson Gonçalves e pelo maestro e arranjador francês Paul Mauriat.
Eu não sabia que doía tanto/uma mesa no canto, uma casa e um jardim./Se eu soubesse quanto dói a vida,/essa dor tão doída, não doia assim./Agora resta uma mesa na sala/e hoje ninguém mais fala no seu bandolim./Naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele/tá doendo em mim. (...)
Filho que retrata o pai
No dia em que Jacob estaria completando 60 anos (vivo fosse), o jornalista Jésus Rocha, de Última Hora, à época editor do “Segundo Caderno”, pediu ao filho, Sérgio, um depoimento sobre o pai. Ao correr da máquina, Sérgio Bittencourt, jornalista e compositor, escreveu comovente texto acerca da pessoa de Jacob do Bandolim. Eis o retrato que o filho hipersensível traçou do pai idem:
“Sou avesso a biografias, cronologias, datas, números, quando se trata de querer saber quem é quem, quem foi quem. Muito mais hoje, 14 de fevereiro de 1978, dia em que, se vivo estivesse, o cidadão Jacob Pick Bittencourt completaria, ao lado de poucos, porém, enquanto vivos, fiéis amigos — nada mais do que 60 anos de idade.
Filho de uma polonesa da cidade de Lodz, refugiada da Primeira Grande Guerra e de um pacato, quieto, injustiçado — até pelo filho — farmacêutico vindo de Cachoeiro do Itapemirim, o Sr. Francisco Gomes Bittencourt (lá ia eu esquecendo de registrar o nome “duvidoso” de minha avó paterna; a colônia de judeus a chamava de “Regina”. No registro estava Sra. Raquel Pick).
A bem da verdade, “Regina” era o chamado “nome de guerra”.
Jacob nasceu na maternidade de Laranjeiras, fruto de um descuido da polaca e do tranqüilo dono da farmácia Bittencourt, na Rua Uruguaiana, ao lado da “Casa Garson”. Nasceu e ficou nascido! Cresceu na Rua Joaquim Silva e na Avenida Gomes Freire.
Estudou no “Anglo-Americano”, depois de conhecer de perto e ser protegido em menino, por Miguelzinho, Edgar, Camisa Preta. Do “Anglo-Americano”, onde jogou basquete e não cantou o hino em homenagem ao Príncipe de Gales, preferindo, pela vez primeira, “bater gazeta”, o que lhe resultou fratura na perna em três partes, foi para o CPOR e trabalhou no arquivo do Ministério da Guerra.
Já tocava bandolim. Donga, mestre Donga, foi quem o convenceu a prestar concurso para a Justiça — cargo: “Escrevente Juramentado”. Passou em 13º lugar. Na ordem de classificação, vindo de fora, obteve a 1ª colocação. Afinal estava na hora, mulher, dois filhos, sendo um deles, o mais velho, portador de hemofilia, o jeito foi meter a cara nos livros e ir para a grama da Quinta da Boa Vista, onde minha mãe lhe tomava os pontos e com muito amor, ternura e subserviência, lhe preparava lautos sanduíches de pão com pão!...
Nem para uma rapinhada de manteiga, dinheiro havia. Havia, sim: garra. De ambos. Dois filhos, uma vontade de responder ao mundo mais ou menos nestes termos:
– Nasci de uma aventura, cresci no meio do lixo, conheci o lixo, não vivi dele, meu velho pai era quem pagava tudo e eu não sabia, ou tocador de bandolim, artista de rádio ou marginal, como querem, mas, um dia vou ser a lei. E foi.
Embora filho da velha polonesa resmunguenta, que amava mais o papagaio de estimação do que o próprio chamado "fruto do seu pecado" — no caso ele — Jacob só fez lutar, na vida. Eu seria mais franco se dissesse — e vou dizer: Jacob só fez brigar na e pela vida. Minha avó paterna, doce criatura para os netos e o marido, massacrou-o bastante. Ele resistia por amor. Adília Freitas Bittencourt, sua mulher, era tudo para ele — menos na música. Ele era a criatividade. Ela, o artesanato. Sabia de todas as suas preferências: arroz, muito arroz, bife e batatas fritas. Doces, todos os doces.
Pegou-o pelos beiços e soube segurá-lo até o dia 13 de agosto (sempre insano agosto!), de 1969, quando dirigindo sozinho seu carro, Jacob chegava à sua casa, em Jacarepaguá, vindo da residência de um de seus poucos ídolos, Pixinguinha, já ofegante, avisando que estava morrendo, sendo recostado pela mulher e o sogro no chão da grande varanda — onde morreria.
Eram 6 horas da tarde. Diagnóstico: infarto e edema pulmonar.
Já estava fumando seis maços de cigarros por dia. Fez de tudo para largar o único vício, de tratamentos psiquiátricos, até solenes sessões de macumba e hipnose. Nada adiantou. Não jogava, não bebia, em futebol seu time chamava-se “Zizinho Futebol Clube”. Fumava. Apenas.
Um temperamento puramente emocional. Chorava e xingava, numa fração de segundo. Quando ouvia um “acorde” bem feito ao violão, não se continha e gritava: – Bonito!!!
Amava, com a mesma força e sinceridade, seus dois pólos opostos: a Justiça onde chegou a Escrivão-Chefe da 11ª Vara Criminal e a Música; o estudo, a busca, a análise da genuína música popular brasileira.
Jacob do Bandolim Sempre nos amamos, com o amor sério e fiel de dois guerreiros, muitas vezes em trincheiras opostas.
O que fiz por ele, fiz e não digo. O que fez por e de mim, foi um tudo. Me lembro: jamais me mentiu. Era capaz de esbofetear um mentiroso, apenas pela mentira. Fosse de que gravidade.
Me lembro: Papai, vai doer? A perna toda roxa, a enfermeira da Santa Casa, ele: – Vai!
No dentista: – Muito, papai? Ele: – Bastante.
Repito e gosto de repetir: jamais me mentiu. Mas, nos momentos em que estive “cara a cara” com a morte, ele também não me mentiu. E, como nas outras ocasiões, não me mentiu, mas soube, sempre, me estender a mão. Quando eu agarrava, mordia, deixando naquelas mãos santas de datilógrafo e músico, as marcas incuráveis da minha dor.
De tudo que me ensinou, certo ou errado, hoje, dentro dos meus já então parcos e paupérrimos preconceitos, retiro, inapelavelmente, uma solução, uma saída, uma parada para pensar, um pouco de coragem para enfrentar, muita coragem para não “aderir” — na última das hipóteses, um sofisma, uma frase feita — estamos conversados!
Seus ídolos: Almirante, Orestes Barbosa, Noel Rosa, Nonô (pianista, tio de Cyro Monteiro e parente de Cauby), Bonfiglio de Oliveira, Pixinguinha, Ernesto Nazareth, Sinhô e Frei Fabiano, que passou a viver promiscuamente, com alguns “orixás”, dos mais respeitáveis que surgiam lá em casa para tentar dar um jeito nas três úlceras duodenais, na vesícula (que acabou extirpada), na hipertensão, que Dr. Manoel sempre agüentava, no “bico de papagaio”, da eterna suspeita de câncer, na doença incurável do filho.
Meu pai, em momento algum admitiu morrer. (Observem: seu ídolo, Pixinguinha, morreu dentro de uma igreja. Ele, na hora santa da “Ave Maria”. Não sei, não, mas a vida às vezes, nos mostra algum sentido.)
Estudou Ernesto Nazareth tanto, que agindo policialescamente, uma espécie de “Holmes Jacarepaguense”, provou, pericialmente, que o grande pianista e compositor suicidou-se, quando passeava pelas matas do sanatório da Taquara, num rápido e fatal estado de lucidez. Percebendo-se louco, deixou-se morrer afogado. Desta tese, meu pai não admitia nenhuma contrapartida.
Um dia apaixonou-se pela fotografia. Comprou todo o equipamento, ingressou na ABAF e concorreu com uma foto de uma máscara de ráfia com fumaça em 1º plano. Venceu. Era o que queria.
Não foi homem de botequins. Gostava do “ajantarado” dos sábados e domingos. Sempre naquela mesa. Regime: absolutamente patriarcal. Depois do almoço, ia dormir. O silêncio se fazia, debaixo de todos os medos.
E ensaiava. Ensaiava sempre, com seu conjunto, que, de repente, ele chamou de “Época de Ouro”. Além da sua genialidade, só deu à MPB Elizeth Cardoso — e precisava mais? — e esse menino, Déo Rian.
Sentia-se um pouco “guru” de pessoas como Sérgio Cabral, Hermínio Bello de Carvalho, Ricardo Cravo Albin, a quem respeitava muito, embora, como secretário do tal Conselho Superior de Música Popular Brasileira, discutissem sempre. Ricardo, verdade seja dita, “perdeu” a discussão com ele, apenas por uma simples, porém fatal, questão de tom de voz. Meu pai a tinha linda. Ele próprio, era lindo. Exatamente: um homem lindo. E sabia disto. O que lhe faltasse, talvez, em cultura, sobrava-lhe em inteligência e tirocínio e emoção. Algumas vezes esteve para morrer... diante do belo!
Era homem de saraus, que amanheciam. Incrível: “Escrivão Criminal”, respeitadíssimo na Justiça conseguia ser também, ladrão. Sim: ladrão! Ele sabia que você guardava um disco velho, daqueles da “Casa Edson do Rio de Janeiro”. Aí ele pedia para ele. Você não dava. Então, cismava que você deveria emprestar o disco para ele passar para a fita magnética. Você dizia “não”. Ele simplesmente, furtava. Em casa, no seu Arquivo, muito mais do que um santuário, passava pro gravador, para partitura, pro microfilme e devolvia. Quando devolvia, sejamos sinceros.
Ah, sim outros ídolos: — Radamés Gnattali, Paulo Tapajós, João Pernambuco, Capiba, Luiz Vieira. Detestava o Carnaval: não perdia um desfile de frevos! Vibrava. Chegou a compor e gravar alguns. Dormia cedo, para acordar de madrugada e se enfurnar no seu Arquivo. Ali, era a “Toca do Leão”. Lá conviviam, em perfeita harmonia, seus sonhos e realidades; suas buscas e certezas; seus mortos e vivos.
Suas duas manoplas, tanto serviam para batucar, numa ligeireza fantástica, a máquina de escrever durante o interrogatório (odiava ladrão), como para criar um som que nunca foi de bandolim. Foi dele.
O que Luperce Miranda fazia com estrondosa agilidade, ele fazia com humildade e sentida emoção. Tocava de olhos fechados, apertando o minúsculo e pobre instrumento contra o peito. Muitas vezes, chorou tocando. Ou melhor: sempre tocou chorando.
Admirava a cultura musical de Lúcio Rangel e de Tinhorão. Era um radical. Sempre foi, um radical que se anunciava “tradicionalista”. Mas, que, numa certa noite de 1969, no Teatro João Caetano, ao lado de Elizeth e do Zimbo Trio, tocou de tudo — e quando resolveu executar o “Chega de Saudade”, ficou estabelecido que, realmente, ninguém mais poderá tocar alguma obra de Tom e Vinícius! Uma noite! Uma loucura!
Hoje, sinto pena de seus amigos, da sua mulher e de minha irmã. Todos viram-no morto. Eu, não. Cumpri sua ordem.
Toda vez que ele me vem à mente — e me vem sempre — ou é discutindo com um cassetete na mão e um “32” na outra, ou é interrogando, com a carranca fechada, um punguista da Central, ou é me ensinando naquela mesa, o que, para ele, significava “viver melhor” — ou tirando do seu bandolim, o som liberto e puro do coração. Do coração
. Aos 37 anos de idade, descrente e exausto, sem Deus nem diabo, é que posso afirmar: Jacob Pick Bittencourt foi mais do que um pai. Do que um amigo. Do que um Ídolo. Foi e é, para mim, um homem.
Com todas as virtudes, fraquezas, defeitos e rastros de luz que certos homens, que ainda escrevemos com “agá” maiúsculo, souberam ou sabem ser. E homem com H maiúsculo, para mim é Gênio.
Tenho certeza e assumo: não sou nada, porque, de fato, não preciso ser. Me basta ter a certeza inabalável de que nasci do Amor, da Loucura, da Irrealidade e da Lucidez de um Gênio.
Sérgio Bittencourt
Naquela Mesa
(Sérgio Bittencourt)
Naquela mesa ele sentava sempre
E me dizia sempre, o que é viver melhor,
Naquela mesa ele contava estórias
Que hoje na memoria eu guardo e sei de cor
Naquela mesa ele juntava gente e contava contente
O que fez de manhã
E nos seus olhos era tanto brilho
Que mais que seu filho, eu fiquei seu fã
Eu não sabia que doía tanto
Uma mesa no canto, uma casa e um jardim
Se eu soubesse o quanto dói a vida
Essa dor tão doída não doía assim
Agora resta uma mesa na sala
E hoje ninguem mais fala no seu bandolim
Naquela mesa tá faltando ele e a saudade dele
Tá doendo em mim.
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