segunda-feira, 7 de maio de 2012

Crônica - Queijo Suiço - Maitê Proença


Minha memória é um queijo suíço: a consistência tem bom sabor, mas os buracos são muitos. Marquei consulta com um neurologista depois de ouvir de minha filha que, não fosse minha facilidade para decorar textos, era certo que estaria com Alzheimer. Palhaça! Por via das dúvidas, fui ao doutor. Ele disse que estou normal, a vida é que se encheu de frentes dispersando a atenção de todos. É falta de foco, não de memória, quando você se encantar e for absorvida por um assunto, não vai esquecer.

Quem disse, cara pálida? E o filme do Woody Allen a que assisti outro dia e já não consigo contar para ninguém? E o livro extraordinário da cabeceira de que não me recordo nem do título? E a piada engraçadíssima cujo final parece ter saído para passear na memória de outro? Quantas histórias repetirei cem vezes nesse teste de paciência que hoje imponho aos amigos? A vantagem é quando estes me recontam casos (sim, porque não vivo sozinha na ilha dos desmemoriados, há outros aqui, todos já tendo virado o Cabo da Boa Esperança, que é o tal onde Vasco da Gama assoprou cinquenta velinhas). Quando os amigos repetem histórias, mesmo aquelas de lascar em que fui protagonista, me farto de rir como se falassem do paquistanês da esquina, não é comigo. Naturalmente há ganhos... essa neblina que envolve o passado e confunde, também lhe confere charme: a vida dura e cruel ganhou contornos heroicos, momentos prosaicos envelheceram espertos, dores de amor viraram livros, desavenças perdoadas transformaram inimigos em irmãos. Pensando bem, ficou até mais bonito o passado.

Epa! Que onda nostálgica é essa! Que papo furado! A verdade é que dá uma baita insegurança não poder mais contar com a caixa de dados. A engenhoca sempre esteve disponível no mar cinzento do meu cérebro e agora, sem aviso, abandonou a nau no meio da viagem. Navego perdida em um barquinho de papel. Ando fazendo papelões. Fui ao hospital visitar uma amiga que se acidentou. Estava lá um casal, ele, diretor de TV, que, num extrapolar de suas funções, chegara a me demitir tempos atrás, sendo desautorizado no dia seguinte, o que, obviamente aumentou bastante sua fúria contra minha pessoa. No afã de aliviar os males da amiga, não reconheci o gajo, nem sintonizei com seu nome quando me foi apresentado. Desandei a contar histórias para rir, uma seguida da outra. Estava mão na bunda com meu desafeto, alegre e satisfeita como se não houvesse passado, enquanto, da cama hospitalar, a amiga constrangida ensaiava sinais de alerta para me proteger de mim. Em vão. Compulsiva, eu seguia a pantomima num entusiasmo de dar dó. Já em casa de noite, toca o telefone, "aquele era o fulano, seu arqui-inimigo". Não! E agora? Nem para encenar a insuportável na hora do aperto a cabeça está servindo mais! Dias depois, quem liga é a mulher do sujeito, "olha aqui, querida, mandei fulano fazer as pazes com você. Onde já se viu, uma criatura tão adorável...". Fecha o pano. Por conta do queijo suíço, reconciliei-me com fulano com quem hoje compartilho esclerosada afeição.

A verdade é que, uma vez instalada a situação do esburacamento queijístico, não terá volta e nem irá melhorar, o jeito é levar na dignidade. Sugiro, a fim de evitar gafes e outras faltas graves, o bloquinho para anotações. Não um, mas vários, espalhados por toda a parte já que os lapsos não escolhem local, hora ou dia. Grandes aliados das providências a tomar, dos telefonemas a responder, de compromissos, agradecimentos, reclamações e das ideias luminosas que seriam, de outra forma, abduzidas pelos buracos negros do queijo, o bloquinho tem grande valor. Não serve o celular, posto que este nunca está quando precisamos, e que, ao procurá-lo, blunfas!, vai-se a estrelinha fulgurante brilhar em outra constelação.

Único inconveniente do bloco é que, para sua utilização, faz-se indispensável outro pequeno acessório: os óculos. Não um, mas vários. São óculos na cabeceira, ao lado da TV, na mesa do escritório, na bolsa, na outra bolsa que precisa também das lentes de sol, e no carro, lógico, pois assim está escrito na carteira de motorista. Esqueceu? Pegue seus óculos e leia. Antigamente era simples, havia apenas aquele feioso de enxergar longe, mas agora, desde que o queijo se alojou em definitivo e que, pela mesma época, um belo dia acordei sem distinguir as letras do jornal (imagine para fazer uma sobrancelha...!), desde então preciso de uma lente para cada bloquinho. E preciso das outras de enxergar longe, a fim de cumprimentar as pessoas que me xingam de antipática quando quero ficar bela sem elas. Há ainda os óculos de media distância para o computador! Eu bem que tentei um modelo trifocal sugerido pelo oftalmologista, mas aquilo me deu vertigens, confusão na mente, e estava quase desenvolvendo múltiplas personalidades, quando desisti. Sim porque uma tripla visão do mundo me levaria a mais um doutor, já que além do neuro e do oftalmo agora, com a realidade subitamente aumentada, precisaria de um psicanalista para auxiliar no destrinchar de minhas múltiplas verdades. Céus, sinto que estou perdendo o foco. Sumiu o raciocínio, desviei-me. Para onde? Vou dar uma espiada no suicinho encadernado, deixei bem claro nele o que iria dizer.

Cadê os óculos?


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