Introdução: 
Por que escrever sobre a produção de cânhamo no Brasil?
 Há muito estamos discutindo em nosso país o plantio da cannabis para  vários fins. Pesquisas comprovam sua eficácia na produção de  medicamentos, na produção de tecidos, plásticos, entre outros produtos.  Mas este plantio é novidade no Brasil?
 Este texto nos apresenta um caso de plantio da cannabis para a  produção de linho cânhamo no período do Império. Comprovando que esta  prática já foi utilizada sem ser associado com uma produção ilícita em  nosso país. Desta forma, podemos afirmar que o plantio desta tão temida  erva pode sim ser gerador de emprego e renda, para além de ser  qualificado como ilícito. 
 O cânhamo é uma planta da família das moráceas, de nome científico  “cannabis sativa”.Seu uso na fabricação de tecido e suas propriedades  intoxicantes, se remete a tempos antigos, ligando-o a lendas antigas  gregas e orientais. Segundo alguns autores, os filamentos compridos e  sedosos da planta serviam para fazer cordas que amarravam os cavalos e  os bois em Roma, bem como serviam para a produção das velas dos navios  que eram feitas de seu tecido forte e grosso.
 No Brasil, seu uso na produção têxtil se remete ao período colonial.  Há registros de sua cultura em Santa Catarina e no Rio Grande do Sul, a  partir de 1770. Mas, para Manoel Pio Correia, a planta já havia sido  trazida para país para fins hipnóticos pelos escravos que chegaram na  primeira leva de africanos ao Brasil em 1549.

 As propriedades do cânhamo não se restringem a sua função têxtil ou  hipnótica, ele também, se administrado na medida certa, serve como um  ótimo medicamento calmante e antiespasmódico, moderador da contração  muscular, sedativo de dores gástricas e cólicas uterinas. Desta forma  podemos pensar que o motivo para que a planta tenha sido trazida ao país  pelos escravos, possa ser seu uso como planta medicinal e não somente  como uma droga de uso recreativo.
 1. Uma história: 31 anos da Real Feitoria de Linho Cânhamo 
Para  exemplificar a produção de cânhamo no Brasil, tomemos como exemplo a  Real Feitoria de Linho Cânhamo, no Rio Grande do Sul em 1783. Esta  fazenda funcionou durante 31 anos produzindo linho cânhamo para venda no  mercado externo e produzindo também seus gêneros de necessidades  básicas. Os esforços seriam voltados somente para o plantio do cânhamo,  pois não era objetivo a montagem de instalações para o processamento dos  tecidos.

 Para tal função foram importados do Rio de Janeiro, da Fazenda Santa  Cruz, 21 casais de escravos, todos jovens e com potencial para a  produção e reprodução da escravaria. Os casamentos eram incentivados,  desta forma se garantia o aumento da mão-de-obra futuramente. A  constituição de família e de laços de amizade propiciaram que os  escravos, em uma certa medida, começassem a negociar com os  administradores da fazenda conseguindo algumas concessões. Conseguiu-se,  por exemplo, a dedicação de dois dias na semana para o cultivo de suas  próprias roças, a realização de festas, o incentivo ao casamento entre  os escravos, entre outras.
 Com o crescimento da família a produção de gêneros alimentícios  também teve que crescer, assim o tempo dedicado a roça familiar aumentou  e o tempo dedicado à produção do cânhamo começou a diminuir. Outro  fator importante que contribuiu com a diminuição na produção, foi a  inexperiência dos feitores contratados para o trato com os escravos e a  experiência na produção agrícola dos escravos. Assim os escravos  “ditavam as regras produtivas”, pois detinham o conhecimento necessário  dos andamentos produtivos e podiam utilizar parte do seu tempo na  comercialização de seus produtos em feiras livres.

canhamo fino
 2. confrontos entre escravos e clero
Os  confrontos e revoltas por castigos aplicados, as ameaças de levantes, o  amedrontamento através de festas e cerimônias religiosas eram freqüentes  nos relatos desde 1802.  Destaca-se como liderança desta insurreição  Manoel José. Ele fugiu da fazenda e foi fazer um requerimento contra o  inspetor da fazenda ao governador, contando com a apoio de um patrono na  sociedade de Porto Alegre. Acredita-se que os escravos queriam que o  inspetor, Padre Cruz, se demitisse do cargo, e para concretizar seus  planos organizavam ações que aterrorizavam o Padre.
 Da mesma forma que Manoel José, o Padre recorreu ao governador  queixando-se dos motins realizados pelos escravos. Pelos registros de  cartas ao governador da província, constata-se que o Padre. Cruz  conseguiu reverter a situação, pois o escravo Manoel José foi preso,  afastando-se assim da escravaria. Entretanto a estratégia de  desmobilização utilizada pelo Pe não deu o resultado esperado, os  escravos continuaram seus motins e agora com mais uma motivação: a  punição de um de seus líderes.

toalha de canhamo fino recortada
 Em 14 de dezembro de 1814, Joaquim Maria da Costa Ferreira relata a  morte de Padre. Cruz ao governador da província de Porto Alegre, Marques  Alegrete: ele fora assassinado pelos escravos. Depois de 11 anos, os  conflitos entre escravos e inspetor chegavam ao fim. A administração da  fazenda foi passada então para outra pessoa, que não constam nos  registros da província. 
 Em 1822, sob a influência das idéias liberais, surge um novo projeto  para a fazenda, onde se fortaleceria o cultivo para mercados locais,  trocar a cultura do linho cânhamo por outras culturas, como algodão.  Mesmo neste período, pós Padre Cruz, os escravos continuam com suas  ações de resistência ao controle escravista. Além da concentração na  produção de suas hortas, consta em relatos que sistematicamente cabeças  de gado eram roubadas pelos escravos, e rapidamente vendidas no mercado  local. O que comprova uma rede comercial para receber não só a produção  agrícola escrava como também outras mercadorias, neste caso a carne. 
 A tentativa de repressão da nova inspetoria se dá em convocar  soldados para prendê-los. A reação dos escravos foi fantástica, não se  entregando a prisão e saindo das senzalas com suas ferramentas e  enfrentando os soldados O que comprova mais uma vez, o controle dos  escravos de alguns meios de produção, já que as ferramentas ficavam com  eles dentro da senzala.
 No ano de 1824 a Real Feitoria do Linho Cânhamo é extinta.  Em seu  lugar foi formada uma colônia de alemães. Os escravos foram enviados  novamente para a Fazenda Santa Cruz no Rio de Janeiro, pelo menos é o  que consta em documentos relativos a sua extinção. 
 Considerações finais
Vale pensarmos nos elementos  que fizeram com que esta fazenda não prosperasse. O solo de qualidade  imprópria para o cultivo do cânhamo, a inexperiência no cultivo, falhas  na administração, são os principais fatores para o fracasso da Real  Feitoria segundo a historiografia brasileira. Entretanto para  Maximiliano Menz, foi a luta dos escravos que inviabilizaram o projeto  da Real Feitoria do Linho Cânhamo. Através da organização de uma rede de  solidariedade que embasou os enfrentamentos realizados pelos escravos  da fazenda.

canhamo grosso
 Para Menz: “a família escrava e “retaguarda natural”, que deveriam  servir a reprodução e o fortalecimento do regime escravista,  transformaram-se nas bases da resistência ao regime”.
 Através deste exemplo podemos perceber que a extinção da produção de  cânhamo nada tem a ver com seu uso entorpecente ou com a criminalização  da produção. A falência do regime escravista levou junto todas as  fazendas que utilizavam esta mão-de-obra, produtoras de café ou cânhamo,  tanto faz.
 Assim fica a reflexão do início: Como tornarmos real a geração de  emprego e renda com o plantio da tão temida erva? Para isso temos que  inicialmente, reconhecer os outros potenciais que a cannabis apresenta,  deixando de lado o censo comum criminalizante. Desta forma poderemos  enxergar as outras possibilidades que esta produção nos apresenta.
 Referencias bibliográficas
MENZ; Maximiliano M. “Os escravos da Feitoria do Linho Cânhamo: Trabalho, conflito e negociação” – artigo ....
 CORREIA; Manoel Pio “Cânhamo verdadeiro – Dicionário de plantas úteis do Brasil e das exóticas cultivadas” 
 Ana Gualberto - Graduanda em História – UERJ e Assessora do Programa Egbé TN
tags: canhamo, maconha, canabis, sativa, fibra, tecido
  
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