De Fidel a Raúl
"Digam aos irmãos do norte que fiquem tranqüilos, não pretendo exercer meu cargo até os 100 anos", brincou o então presidente de Cuba, Fidel Castro. Naquele 26 de julho de 2006, ele estava profeticamente certo.
Fidel e os cubanos comemoravam os 53 anos do ataque ao quartel La Moncada. Fidel, há mais de 47 anos do poder e perto de completar 80 de idade, estava de bom humor e brincava com a própria longevidade. Não parecia imaginar que aquele seria o último discurso antes de deixar o posto.
Foi um discurso curto para seus padrões, apenas duas horas e meia. "Há muito mais que comemorar", disse. "O país conseguiu reduzir a mortalidade infantil e aumentar a expectativa de vida para 76,8 anos - acima da média dos países desenvolvidos", disse.
O presidente cubano dedicou os últimos minutos de seu discurso para criticar o que chamou de desinteresse do sistema capitalista pelas questões sociais. Mais de 100 mil pessoas participaram da solenidade, na cidade de Bayamo, no leste do país, que contou com a presença de dirigentes do Partido Comunista, ex-combatentes de Moncada.
Fidel foi tão conciso que não citou números que adora repetir nessas ocasiões: a menor taxa de mortalidade infantil do continente (6,22 mortes por mil nascimentos), os 97% da população alfabetizada (86,4% dos brasileiros estão na mesma condição) e a taxa de desemprego de 1,9% da população. Tampouco mencionou (nem costuma fazê-lo) os péssimos resultados da economia do país que tem uma das menores rendas per capita do continente (a 29ª) e convive com o racionamento de alimentos.
Cinco dias depois, às 19h40, os cubanos assistiram na TV a um pronunciamento do secretário pessoal de Fidel, que leu uma nota do presidente. Nela, ele dizia que se submeteria a uma cirurgia e, por isso, e para se concentrar na recuperação, transferia o controle do governo para seu irmão, Raúl.
Era a primeira vez que Fidel Castro, que assumiu em 1959, deixava o cargo. A primeira vez que Cuba ficava sem Fidel.
As pessoas que escreveram e editaram esta matéria, bem como aqueles que nos deram entrevistas e deixaram gravados seus depoimentos, não sabiam se essa ausência era definitiva. Tudo indicava que era.
Mas, tratando-se do homem que resistiu a três anos de guerrilha no meio da selva, à malária, a dezenas de atentados contra sua vida, a dez presidentes norte-americanos (seis deles, inclusive, já morreram) e a quase 50 anos de tabagismo, nada parece impossível.
E em 10 de janeiro de 2007, exatos 48 anos depois do dia em que a revolução tomou as ruas de Havana para dividir o mundo ao meio, Fidel estava recolhido ao hospital. E a pergunta "o que acontecerá quando ele morrer?" também divide o mundo e os especialistas.
O bom humor dos cubanos tem a resposta na ponta da língua: "Como pessoas civilizadas, primeiro trataremos de enterrar o comandante". Piadas à parte, será que o socialismo em Cuba descerá à terra com seu caixão? Imaginar Cuba sem Fidel depende, é claro, de como você vê Cuba com Fidel.
Hospitais e eleições
Com Fidel, Cuba está entre os maiores vencedores de medalhas olímpicas, destacando-se no vôlei, no atletismo e no boxe. Na Cuba de Fidel, o presidente e o vice são eleitos pela Assembléia Geral (e não pela população em geral) para um mandato de cinco anos.
As últimas eleições foram em março de 2003 e Fidel venceu com 100% dos votos, mesmo índice de Raúl, eleito vice. O país tem, hoje, o maior número de médicos e bailarinos clássicos por habitante.
Toda sua população de 11 milhões de habitantes tem direito ao acesso gratuito à saúde e à educação. E desenvolve um programa para atender, nos próximos dez anos, 6 milhões de latino-americanos com deficiência visual - gratuitamente. Em Cuba só há jornais e revistas consentidos pelo governo.
"Para quem comunga das visões do comandante, o que se espera de seus sucessores é a continuação de um projeto que ainda não se revelou completo, mas que sem dúvida trouxe mudanças importantes para a população pobre de Cuba", diz o jornalista alemão Volker Skierka, correspondente na América Latina do jornal Sueddeutsche Zeitung, que acaba de publicar uma biografia de Fidel.
Para quem quer ver a economia de mercado de volta a Cuba, a saída de Fidel é a hora da mudança. "A postura personalista e irredutível de Castro impediu qualquer iniciativa de mudança real na organização econômica e política, mesmo depois do colapso econômico da era pós-soviética. Com seu afastamento, essa bolha deve estourar e o povo cubano vai pressionar em favor de mudanças urgentes", diz a historiadora Holly Ackerman, da Universidade de Miami.
Quando o tema é economia, uma das questões mais candentes na transição para uma Cuba pós-Fidel é a sobrevivência ou não do bloqueio americano, que já dura quase 45 anos. O embargo foi, durante os anos de Guerra Fria, compensado pela ajuda soviética e pelo intercâmbio com o bloco socialista.
Após o fim da União Soviética, em 1992, a economia cubana entrou em colapso e até setores sagrados para o corolário socialista vêm sofrendo com a falta de recursos. De lá para cá, os gastos do governo com educação, por exemplo, foram reduzidos em 35% e as matrículas nas universidades caíram pela metade.
"Nos últimos 20 anos, o desafio cubano tem sido abrir-se para a economia mundial sem abrir mão das conquistas da revolução", diz Holly Ackerman. O fim do bloqueio ajudaria?
"É claro que sim. Pelo menos teríamos a exata noção da saúde e do tamanho da economia cubana. Porém, além do fim do bloqueio, outras questões precisarão ser discutidas. Cuba admitiria se adequar aos organismos internacionais que regem o comércio? Isso sem falar em conviver com imprensa, partidos políticos e eleições livres, antigas reivindicações da comunidade internacional que jamais tiveram aderência junto ao governo de Fidel."
A historiadora brasileira e biógrafa de Fidel, Claudia Furiati acredita que a sucessão já começou há algum tempo. "Um afastamento definitivo vai gerar um grande sentimento de perda no povo cubano, mas acho que eles já estavam sendo preparados para isso", diz Claudia.
Ela acredita, ainda, numa mudança nas relações de Cuba com os americanos. "Deve haver maior diálogo, até porque a direita cubana no exílio tem perdido seu poder de influência, basta ver as últimas eleições legislativas nos Estados Unidos. Tenho a impressão de que a distensão pode chegar à revisão, pelo menos parcial, do embargo comercial."
O teólogo Frei Betto, que esteve em Cuba para o aniversário de Fidel - comemorado com atraso em dezembro - concorda que tudo indica que ele já começou a expressar seu testamento político. "A maioria dos membros do Partido Comunista tem de 40 a 50 anos e cada vez mais jovens ocupam funções estratégicas. Como 70% da população nasceu depois de 1959, não há indícios de anseio pela volta ao capitalismo", afirma.
Para Frei Betto, Cuba não quer como futuro o presente de tantas nações latino-americanas, onde a opulência convive com o narcotráfico, a miséria, o desemprego e o sucateamento da saúde e da educação.
"Não acredito em mudanças significativas. Sem Fidel, o novo governo vai estar preocupado demais com a segurança do regime contra investidas e infiltrações de Miami e com as pressões de segmentos da população que queiram deixar o país", diz o historiador Kepa Artaraz, da Universidade de Wolverhampton, na Inglaterra.
"A elite do poder em Cuba - Raúl, [Felipe] Perez-Roque [ministro de Assuntos Exteriores] e Ricardo Alarcón [Presidente da Assembléia Geral] - continuará liderando o país nessa fase", afirma Artaraz. Para ele, Raúl Castro tem algumas características que indicam que ele dará estilo próprio à presidência.
"Como comandante militar, ele estará particularmente preocupado com as questões de segurança do regime. No campo político, Raúl é mais pragmático que Fidel e mais apto a organizar e delegar responsabilidades. Ele levará ao poder os jovens com idéias novas, preparando-os para suceder a geração de 70 anos", completa o especialista.
Complilado da Revista Aventuras na História, em reportagem de Giovana Sanchez e Felipe van Deursen.
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